quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Lisboa e a "paisagem"



Sou de Lisboa, nasci mesmo no centro e lá vivi, trabalhei e casei... até Outubro de 1975, ano em que deixei a capital e que considero ter sido uma viragem total na minha vida.

Não fugi por causa do ano quente, mas porque o meu marido tinha sido colocado na Beira Baixa como juiz e era suposto ir com ele se houvesse vaga na Escola Técnica da Sertã, que só leccionava até ao 5º(9) ano e cujos alunos só tinham Inglês no 3º ciclo. Na altura eu estava "colocada" na Figueira da Foz como professora efectiva, apesar de só ter 29 anos; os tempos eram outros.
Até à véspera de fazer a mudança, não sabia qual seria o meu destino e estava angustiada de deixar o meu marido e ir para 200 kms de distãncia, numa altura em que as estradas eram mais que ruins e não havia quaisquer autoestradas a não ser a de Vila Franca de Xira e a de Lisboa a Algés.
Felizmente as coisas compuseram-se com uma ida ao Min. da Educação, onde uma "luminária" descobriu que eu podia ensinar Português na Sertã, dado que tinha licenciatura ( com tese) e a cadeira de Literatura Portuguesa I, II e III , feitas como opção. Não me fizeram nenhum favor, mas fiquei aliviada por terem descoberto a pólvora.



Estive na Sertã dois anos. A vila era constiuida por uma rua grande, onde ficava a "minha" casa e um largo, onde ficava o Tribunal. A Escola, antigo colégio de freiras erguia-se no topo dum monte, com vista para o vale, onde passava uma ribeira e onde se podia admirar uma pontezinha romana, muito bonita e bem conservada.
A Sertã era o faroeste, embora ficasse no coração do país. Não me deram telefone em casa, enquanto lá estive, as comunicações com Lisboa eram nulas - só por carta à antiga -, o frio era tremendo no inverno e o quadro de electricidade vinha abaixo cada vez que se ligava um aquecedor. Não havia água quente na cozinha, era preciso aquecer água para lavar a loiça e fazer os biberons do meu bébé. Tinha de lhe dar banho no meu quarto, pois na casa de banho a temperatura era de 4º no inverno. As roupas penduradas lá fora viravam blocos de gelo no inverno ( sem exagero) e as poças de água no pátio que tinhamos de atravessar para dar as aulas eram espelhos gelados e escorregadios. Usava botas, casaco maxi, calças e mesmo assim tinha frio, habituada ao calor de Lisboa.



No Verão, era o contrário, mas como a casa tinha um pátio virado a Norte, estava-se lá bem. Com 30 anos aguentava tudo, até gostava do cheiro do campo, das faces vermelhas dos meus alunos depois de andarem kms para vir à escola, dos tricots que se faziam na sala de professores, das castanhas assadas em latas furadas na lareira da casa de uma colega. E do meu bébé rosado, a comer pétalas de rosa e a rir descaradamente por saber que era malandrice.
Lembro-me do meu deslumbramento quando me vieram buscar uma vez para ver a neve num lugar chamado Alto do Cavalo, onde os pinheiros - havia milhares por ali - estavam cobertos de um manto branco e a paz era total.

Lisboa estava a milhas de distância e só soube do 25 de Novembro por acaso, pois a TV a preto e branco com um único canal estava a dar o acontecimento em imagens muito distorcidas.

Acho que nunca estive tão só como na Sertã, embora Chaves , onde vivi noutros dois anos ficasse a 500kms de Lisboa. Nesses anos, cresci, vivi e reflecti sobre o nosso país de contrastes.

Pensei nos privilégios que tinha tido na infância e juventude e na imagem tão errada que os meus pais, escola inglesa, liceu e meio envolvente me tinham incutido do país em que se vivia. A minha vida até então não tinha nada a ver com o país, era uma falsidade total, um reino de privilégios, um paraíso colonial, como aqueles que se viam na India, em séries inglesas, como a "Joia da Coroa".

Nunca mais consegui pensar em Lisboa como dantes - a minha cidade, a maravilha luminosa à beira Tejo, os turistas prósperos, o bairro do Restelo cheio de família cristãs com uma mente limitadíssima e numerosos filhos a dar esmolas aos mais necessitados para aliviar a consciência, as missas dos Jerónimos, os pasteis de Belém quentinhos, a Gulbenkian, a vila de Cascais, a Linha, tudo aquilo parecia irreal ao pé do resto do país que acabei por conhecer bem.

Hoje vivo no Porto e a vida mudou, o país também. No entanto, quando oiço os media, leio os jornais ou falo com a minha família, continuo a ver flashbacks do antigamente, a macrocefalia da capital, o sorvedouro de dinheiro que ela absorve em detrimento de outros locais, a importância que se lhe dá na TV, as entrevistas sobre pormenores que não interessam a 3/4 do país, a euforia dos eventos a toda a hora, o enfatuamento e empolamento de questões de lana caprina que se tornam eventos nacionais. Que seca, diriam os jovens. E é.

Estas eleições trouxeram ao de cima muitas destas minhas memórias....e , embora, não queira discutir política aqui, senti-me na obrigação de exprimir o que sinto. Para memória futura.