Foi, sem dúvida, um dos dias mais marcantes da minha vida.
Tinha 25 anos vividos numa época semi- dourada - os anos 50 - e depois noutra mais alerta e desperta, no liceu e na universidade, onde já se vivia um período conturbado. Vivia bem, embora os meus pais nos educassem com parcimónia nos gastos, mas dava-me conta das desigualdades entre famílias e chocavam-me certas elites - que se auto-promoviam só porque provinham de uma qualquer família bem do nosso Estado Novo - desejosas de manter o
statu quo, praticando a caridade, como mandava o Pároco na Missa aos domingos ou os Cursos de Cristandade e criando a ilusão de que vivíamos num mundo quase perfeito, em que não havia guerras, nem vestígios delas e as pessoas tinham direito a certas mordomias só pelo facto de terem nascido nessas famílias, dos seus pais terem tido uma educação, de terem conseguido vencer na vida e de praticarem o Bem à sua volta num marasmo celestial.
Nos anos 70, já havia a guerra de África, que me levou um cunhado aos 32 anos, os jovens já não tinham a mesma liberdade de saídas para o estrangeiro, o ambiente ficou cada vez mais tenso até eclodir em 25 de Abril.
Só comecei a ter preocupação política nos ultimos anos do liceu porque me dava com raparigas que eram "de esquerda", falavam da Pide e de presos políticos, escreviam ou representavam peças que eram repudiadas pela Reitora, encontravam-se na Capela do Rato e já revelavam uma certa anarquia e revolta contra o regime salazarista. As minhas maiores amigas eram bastante politizadas, embora com as limitações impostas pelas Mães que tudo controlavam, até as leituras, os filmes, as festas, os namoros e os locais de encontro.
No dia
25 de Abril de 1974 encontrava-me no epicentro da Revolução às 8 da manhã em pleno Marquês de Pombal, em Lisboa. Ia dar aulas no Liceu MªAmália quando fui abordada por um senhor que me avisou de que o liceu estaria fechado; tinha havido uma revolução. Era melhor eu ir para casa. O meu marido estava no Estado Maior do exército, cumprindo o serviço militar, e fora chamado para se reunir com os outros milicianos para decidirem o que fazer. Resolvi ir para casa dos meus Pais e seguir pela TV, com eles e os meus irmãos, o que se estava a passar. O meu Pai estava nervoso, na altura ocupava o lugar de Chefe de Serviço de Pediatria do Hospital de Santa Maria e era Professor da Faculdade de Medicina. Dava-se bem com Marcelo Caetano, que fora seu Reitor na UL.
Foi então que vi realmente o que estava a acontecer, como num filme a preto e branco. O povo andava todo na rua. Os soldados tinham-se revoltado, mas não havia sangue, nem tiros, parecia tudo normal ou quase. Berrava-se muito, não se sabia o que ia acontecer, as pessoas pareciam malucas, mas a cena era meio tragico-cómica, sem grande estardalhaço, nem mortos, nem feridos.
Os tempos que se seguiram foram para mim uma revelação. Estava a dar aulas num liceu antiquado, onde havia regras para tudo, mas onde as professoras, como eu, eram dum nível superior, em geral, com uma craveira acima da média; imediatamente se criaram grupos, uns mais revolucionários que tudo queriam mudar, outros mais temperados que achavam perigoso embarcar na anarquia reinante entre as alunas. Pendi sempre para a esquerda moderada e criei laços com pessoas excepcionais, aprendi a lidar com extremistas de ambos os lados, e deixei-me também levar pelos novos ideiais do socialismo, que dum momento para o outro tudo queria derrubar, sem edificar nada de muito concreto. Passávamos o tempo em RGAs, em que se discutia o sexo dos anjos e nada se conseguia fazer, pois ninguém se entendia e havia grupos de alunos que sistematicamente boicoitavam as discussões, querendo sanear professores a torto e a direito.
Resolvi então dar o corpo ao manifesto e ofereci-me para fazer parte duma lista que concorria com outras duas para a Gestão do Liceu. Tinha pessoas moderadas e também uma ou outra mais esquerdista, mas, no geral, eram pessoas com classe e a noção de que estávamos num estabelecimento de ensino e havia regras, mesmo usando a liberdade que nos tinha sido oferecida pelos militares de Abril. A nossa lista ganhou e passei o ano de 1974-75 a dar aulas e a gerir o Liceu com mais quatro colegas. Foi um ano épico. Tinha muito trabalho, passava horas infindas no Liceu, mas as conversas eram frutuosas e andava entusiasmada com o ambiente em que se vivia. Mudámos muitas regras obsoletas e criámos laços estreitos de Amizade com as alunas.
No
11 de Março de 1975 fui com alguns colegas para o Carmo e aí já estranhei o facciosismo de algumas pessoas, como uma mulher, que me levantou o braço direito à força e gritou:" Camarada, cante VITÓRIA!"
. Isso chocou-me mais do que qualquer discussão que tivesse tido com pessoas de esquerda. Nesse dia e após uma conversa com o meu marido, fez-se luz no meu espírito.
Não queríamos outro fascismo, agora de esquerda. Não queríamos ser governados por uma maioria comunista. Não queria ser obrigada a pensar pela cabeça dos outros. O meu marido, aliás, que era lúcido e conhecia bem as políticas e a evolução dos esquerdismos e comunismos - tinha em casa todos os livros sobre o assunto que jamais vi - aconselhou-me e bem a acalmar, pois não era com totalitarismos de esquerda que se podia chegar à LIBERDADE e à DEMOCRACIA.
Em Setembro de 1975, deixei Lisboa e fui viver para a Beira Baixa, na Sertã,
local ermo, onde nada se passava, não havia telefones, a TV transmitia um canal e mal, a escola era técnica, só havia alunos até ao 5º ano (9º) e a minha missão foi ensinar português em vez de Inglês, que era o meu metier. Não me dei mal com a experiência, mas a revolução passou-me ao lado. Naquele ermo, tive o meu primeiro filho e os meus interesses deram uma volta de 180º.
A minha LIBERDADE passou a ser uma prioridade menor. Como mãe e esposa, o que desejava era que a minha família pequenina fosse feliz. E tudo o que fiz nesses dois anos foi ensinar alunos desfavorecidos o melhor que sabia e podia... e tratar dos meus para que se sentissem bem, longe de tudo e de todos.