segunda-feira, 9 de maio de 2011
Beethoven e o meu Avô
Em geral, quando se fala dos concertos de Beethoven, cingimo-nos aos de piano, do 1º ao 5º todos são muito populares, sobretudo os 3,4 e 5. Já gostei mais duns que outros, mas ouvi-los faz-me sempre go down memory lane, ou seja, voltar ao bau de memórias, à casa dos meus Avós , na Rua Vale do Pereiro em Lisboa.
O escritório do meu Avô era um pequeno mundo de coisas insólitas para mim, em criança. Tinha estantes escuras a toda a volta, estantes essas que ainda estão em casa da minha irmã, já bastante carcomidas.No meio dos livros havia de tudo, caveiras dos mais variados materiais e feitios, mas sempre com os dentes de fora e olhos metidos para dentro, assustadoras q.b., Mefistófeles com expressões maléficas e corninhos, um dos quais foi oferecido ao meu ex- pela minha Avó, esculturas de compositores clássicos trazidos religiosamente das suas viagens, recordações, postais e fotografias. Era um manancial dele, só dele. A secretária era uma delícia para o olhar, com lápis dos mais diversos tamanhos, muitos pequeninos, que ele aparava com uma faquinha especial, tinteiros e penas, com as quais escreveu alguns dos seus livros sobre História de Portugal, mata-borrões cor de rosa com pega de prata, facas de cortar papel, gavetas e gavetinhas, moedas, recortes dos jornais, etc. As lombadas dos livros eram muitas vezes feitas por ele e gravadas com tinta dourada. As fotografias a preto e branco eram pintadas a cores e as nossas carinhas levavam make-up que ele carinhosamente aplicava para que parecêssemos mais saudáveis:). Tinha também esculturas de crianças,por todo o lado; uma com a pauta do-re-mi-fa-sol que nós adorávamos.
E porquê falar de Beethoven neste contexto? Porque oiço o concerto de violino opus 61 interpretado maravilhosamente no Mezzo por um violinista que desconheço e percorro o caminho até aos meus dez anos, em 1956, quando os meus pais me levaram a um concerto pela primeira vez. Tocava o David Oistrack, um monstro do violino, russo, gordinho, com os dedos ágeis dum jovem. Sempre adorei este concerto que se inicia com o suave batuque do tambor.
O meu avô costumava deitar-se numa chaise longue forrada de veludo e cujos braços acabavam em forma de mãos. Escolhia a Emissora 2 e ouvia todos os concertos que transmitiam durante o dia - os que ele gostava e não considerava "palha".
Ouvi este e muitos outros concertos sentada ao colo dele ou então já na minha caminha, com a porta aberta, não muito longe do escritório. Beethoven era o seu compositor de eleição, a par de Verdi.
O violino é um instrumento lindíssimo. Estou a ver o meu neto a tocar daqui a uns anos um concerto destes. Deus queira.
É assim a evolução das gerações, o milagre das famílias e o que nos anima a viver o nosso dia-dia, com os anos a correr cada vez mais depressa.
E do concerto de violino - interceptado por uma chamada no skype do meu filho que está em San Francisco - passámos para a 5ª Sinfonia de Beethoven. E agora relembro as tardes em que eu tentava tocar o Andante no piano, simplificado, com o meu Avô a dirigi-lo com o braço, dando enfase aos FF - fortíssimos - para que a peça fosse tocada com expressão. Eu obedecia e vibrava.
E com esta oferta musical da TV....como aguentar os debates políticos e pensar em eleições? Não se pode votar em Beethoven, infelizmente.