Considero-me uma pessoa muito privilegiada.
Sempre achei que, para além duma infância e adolescência despreocupadas e repletas de benesses que não eram permitidas a todos, a minha vida profissional também foi extremamente rica, com momentos difíceis e alguns mesmo insuportáveis, mas também com horas de trabalho entusiástico com alunos , colegas e estagiários de quem fiquei amiga para sempre e, last but not least, o reconhecimento público dos manuais escolares, que comecei a fazer em 1982, vai fazer trinta anos em breve.Hoje sou uma pessoa com memórias excelentes gravadas no meu subconsciente, memórias essas que vêm à tona quando parece que a vida acabou. Há uma semana, sentia-me completamente destruída e angustiada, hoje sou capaz de olhar para o céu ( e não sou a única, como dizem os "Chutos e Pontapés"). Vale a pena viver.
Depois de ter trabalhado durante duas horas no meu novo projecto e de ter conseguido falar sem gastar um centavo com o meu filho, do aeroporto de Bruxelas e, depois, ainda com a médica portuguesa da minha filha - uma das pessoas mais importantes que encontrei na vida - , resolvi ir comer ao meu oásis privativo: o restaurante japonês do Jardim do Campo Alegre, vulgo, Botânico.
Campo Alegre é um nome lindíssimo, é bom viver num local com um nome assim. Cada vez mais.
Comi uma sopa de cenoura com gengibre - estou a habituar-me a ir lá quando está sol - passeei pelas áleas floridas do jardim e às tantas, resolvi deitar-me num banco de madeira que faz canto no socalco mais baixo e escondido, que estava banhado de sol.
Ali estive meia hora, a ouvir os passarinhos a chilrear desalmadamente em uníssono (?) com o background ruidoso da VCI, as nuvens passavam suavemente lá em cima, nada me perturbava, as vozes diluíam-se aqui e ali, o odor intenso da glicínea e das rosas inebriavam-me. Se tivesse morrido naquele instante, teria sido trágico para outros, mas o melhor que se pode desejar em vida.
Aprendi a valorizar a minha vida muito mais desde que a minha filha adoeceu em 2005. A partir daí senti sempre que era essencial eu viver, estar aqui, estar lá, existir. Nunca tinha olhado para mim por esse prisma e nunca fui daquelas pessoas que desejam viver eternamente e que se acham indispensáveis.
Mas agora, acho que a minha vida vale mais, sou mais necessária aos outros que a mim mesma e sinto-me com mais ânsia de viver.
No MEZZO, canta-se a MISSA SOLEMNIS de Beethoven, as notas e as vozes enchem de música esta minha sala vazia de gente.
As nuvens adensam-se lá fora, mas o sol continua a brilhar nas copas das árvores gloriosas e cheias de folhas novas. Daqui a nada chega o meu neto da sua aula de violino e mais tarde o meu filho mais novo para ver o futebol aqui e jantar comigo.
A vida, felizmente, ainda não acabou.
Gloria in Excelsis Deo!